crónicas de um bibliotecário-ambulante
Domicílio provisório
Uma tarde fria e chuvosa de um
qualquer Inverno nas andanças da Bibliomóvel de Proença-a-Nova. Primeira
paragem do dia. Um forno comunitário, abrigado num telheiro serve de ponto de
encontro, parque de estacionamento e confessionário público.
Um carro afrouxa, passa,
abranda e trava, segue… abranda e detêm-se! Uma figura sai e vem ao nosso
encontro. Pergunta pela finalidade da nossa presença. Confirmadas as suspeitas
pergunta pelas normas de funcionamento e aponta para outra figura que a custo
tenta sair do carro.
Vou até lá, apresentações
feitas, encontro marcado para daqui a 15 dias no deu domicilio. Primeiro
empréstimo de um volumoso romance que renitente aceita com medo de não o acabar
a tempo do meu regresso.
Os primeiros de muitos quinze
dias passados, lá estou novamente, agora diante da sua porta. Buzino, bato a
porta… nada!!! Passados alguns largos minutos, já dentro da Bibliomóvel vejo
uma figura (era D.D.) a emergir de sua casa. Regresso!
Este primeiro contacto iria
repetir-se por mais alguns Verões, Primaveras, Outonos e Invernos. As suas
conversas lúcidas eram invariavelmente entrecortadas com lamentos pela sua saúde.
Moléstias diversas, para as quais raramente tinha consolo nas inúmeras visitam
a médicos generalistas, especialistas. Incontáveis deslocações a centros de
saúde e hospitais. Baterias de exames intermináveis e nada…
Os seus dias passavam como
folhas de uma bula medicamentosa, encaixada e muitas vezes solitária na sua
embalagem. Uma senhora vinha de manhã, preparava as refeições, a roupa e depois
ia embora.
As vizinhas eram companhia
efémera. Uma delas, uma resistente carpida em anos de trabalho duro estranhava
a ausência de saúde e a excessiva preocupação com a mesma. D.D olhava com
inveja para a fortaleza sanitária da vizinha e arriscava a tratar dos seus
canteiros e pequena horta. Sem grande sucesso. Caia muitas vezes de cama e ali
permanecia.
Pedia-me livros, pequenos que
a vista não dava mais. Insistia em ler e lia em dois dias o livro que ficava
para quinze. Perguntava que se podia deixar mais. Recusava!
Hoje como sempre estacionei a
sua porta. Uma vizinha deu pela minha presença e avisou-me:
- Olhe hoje não está aí ninguém!!!!
Pensei: nova visita ao hospital!
- A D.D. faleceu!! Passou mal
o fim de semana e esta manhã não abria a porta, partimos o vidro, entrámos e
estava na casa de banho. Veio o INEM. Já nada se podia fazer.
Oito anos de estradas, terras
e gentes e já vi partir muita gente (demasiada!) a quem já não posso dizer
mais: “até daqui a quinze dias, fique por
cá tudo bem!”.