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sexta-feira, dezembro 05, 2014

"avó", Biblioteca, enciclopédia

crónicas de um bibliotecário-ambulante

avó, Biblioteca, enciclopédia

Foi numa tarde de um quente verão, atendia-se dentro da Bibliomóvel as últimas solicitações das últimas frequentadoras habituais, na barreira inclinada uma senhora esforçava-se pé ante pé apoiada numa bengala para chegar a mercearia. Olhou por instantes, desconfiada para tão estranha azáfama dentro e fora daquele veículo (para ela estranho!). Seguiu caminho. Continuou a azáfama!
Entrei na mercearia para fazer as despedidas, e a mesma senhora sentada num pequeno banco rasteiro, cumprimentou-me. Cumprimentei-a. Interpelado pela dona da mercearia, sobre se ainda andava a recolher histórias, rematou:
- Aqui a D.Lídia é que era a pessoa certa! Ela tem muitas para contar.
- O meu nome é Nuno!
- Eu sou Lídia Delgado, mais conhecida por Lídia Cesteira, sou dos CONQUEIROS (e não Cunqueiros!!!!) sou costureira, bordadeira, tecedeira, faço versos e sou zeladora do sagrado coração de Maria!
Estava feita a apresentação e que apresentação.
Uma conversa rápida de despedida e de compromisso para visitar a sua casa, para escutar e observar as peças executadas com rigor e perícia, deixar ocasionalmente um livro, revistas e claro registar aquela torrente imensa de saberes e sentires que se adivinhava. Confirmou-se!
Passaram quinze dias, novamente estacionado em frente ao café/mercearia sou confrontado com um recado/lembrete:
- A D.Lidia ligou para aqui a saber se você vinha e pedir para lhe dizer para não se esquecer de lá ir!
Fui!
Uma descida sinuosa por ruas estreitas, uma curva apertada que fez duvidar na passagem incólume da Bibliomóvel, atravessar uma pequena ponte sob uma ribeira quase seca. Estacionei. Olhei em redor em busca de umas escadas. Saí e comecei a subir a ingreme escadaria pensando como seria possível alguém com manifestas dificuldades de locomoção, conseguiria descer e subir tamanhos obstáculos. Mas conseguia!
Foi primeira de muitas visitas. Umas mais rápidas outras mais demoradas, mas sempre alguma coisa oferecida e recolhida. Material e imaterial!
Havia sempre uma avidez na forma como queria transmitir, contar e mostrar TUDO o que sabia.
Quando levava outras pessoas havia sempre um mimo, em forma de um pano, elegantemente bordado para oferecer como lembrança da sua visita.
Guardo alguns deles, oferecidos ao meu filho (com as iniciais dele bordados) com muito carinho.
Recentemente um acidente vascular tinha-lhe retirado ainda mais da já reduzida mobilidade, mas isso não lhe afectou o humor, por vezes caustico e vernáculo que usou sempre para combater anos de alguma sofrida existência e vivencia marcada por algumas tragédias familiares.
Falava dos seus filhos, como os seus anjos da guarda que apesar de distantes a guardavam e protegiam.
Falava da sua extrema devoção religiosa e profana que a salvava em momentos de maior aflição.
Essa capacidade de perceber e entender o outro mundo, fazia com que fosse procurada para resolver maleitas que os adágios populares referem como sendo inatingíveis pela medicina tradicional.
Não resisto a contar aqui um episódio:
Numa dessas visitas quinzenais, ao chegar a sua porta e ao ver que estava escancarada (como habitualmente), entrei e chamei-a. Silencio! Voltei a chamar e como resposta apenas um sussurro vindo da sua cozinha. Dirigi-me até ele. Ao entrar um cenário pouco usual, D.Lidia com uma faca na mão passando pelo braço e tronco de um senhor, acompanhado pela sua esposa, rezando em voz baixa. Surpreendido, recuei e aguardei!
Na saída um agradecimento feito e um esclarecimento sobre aquele ritual ancestral, para terminar com o “Cobrão” passado de geração em geração e que servia para colmatar o fácil acesso a cuidados de saúde oficiais e tradicionais.
Estes e outros saberes foram-me entregues com a satisfação e o orgulho. Com orgulho e enorme satisfação bebi esses e outros ensinamentos de vida e para a vida.

Bem Haja D.Lidia!

" Aqui na minha terra
há biblioteca ao domicilio
o senhor que a conduz
é alegre e divertido.

A Biblioteca-Ambulante
por mês vem duas vezes
tira fotocópias bonitas
traz bons livros para leres!

Maria Lidia do Nascimento Delgado - "Lídia Cesteira"

Descanse em paz D.Lidia!





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