crónicas de um bibliotecário-ambulante
avó, Biblioteca, enciclopédia
Foi numa tarde de um quente verão,
atendia-se dentro da Bibliomóvel as últimas solicitações das últimas
frequentadoras habituais, na barreira inclinada uma senhora esforçava-se pé
ante pé apoiada numa bengala para chegar a mercearia. Olhou por instantes,
desconfiada para tão estranha azáfama dentro e fora daquele veículo (para ela
estranho!). Seguiu caminho. Continuou a azáfama!
Entrei na mercearia para fazer as
despedidas, e a mesma senhora sentada num pequeno banco rasteiro,
cumprimentou-me. Cumprimentei-a. Interpelado pela dona da mercearia, sobre se
ainda andava a recolher histórias, rematou:
- Aqui a D.Lídia é que era a pessoa certa!
Ela tem muitas para contar.
- O meu nome é Nuno!
- Eu sou Lídia Delgado, mais
conhecida por Lídia Cesteira, sou dos CONQUEIROS (e não Cunqueiros!!!!) sou
costureira, bordadeira, tecedeira, faço versos e sou zeladora do sagrado
coração de Maria!
Estava feita a apresentação e que
apresentação.
Uma conversa rápida de despedida e
de compromisso para visitar a sua casa, para escutar e observar as peças executadas
com rigor e perícia, deixar ocasionalmente um livro, revistas e claro registar
aquela torrente imensa de saberes e sentires que se adivinhava. Confirmou-se!
Passaram quinze dias, novamente
estacionado em frente ao café/mercearia sou confrontado com um recado/lembrete:
- A D.Lidia ligou para aqui a saber
se você vinha e pedir para lhe dizer para não se esquecer de lá ir!
Fui!
Uma descida sinuosa por ruas
estreitas, uma curva apertada que fez duvidar na passagem incólume da
Bibliomóvel, atravessar uma pequena ponte sob uma ribeira quase seca. Estacionei.
Olhei em redor em busca de umas escadas. Saí e comecei a subir a ingreme
escadaria pensando como seria possível alguém com manifestas dificuldades de
locomoção, conseguiria descer e subir tamanhos obstáculos. Mas conseguia!
Foi primeira de muitas visitas. Umas
mais rápidas outras mais demoradas, mas sempre alguma coisa oferecida e recolhida.
Material e imaterial!
Havia sempre uma avidez na forma
como queria transmitir, contar e mostrar TUDO o que sabia.
Quando levava outras pessoas havia
sempre um mimo, em forma de um pano, elegantemente bordado para oferecer como
lembrança da sua visita.
Guardo alguns deles, oferecidos ao
meu filho (com as iniciais dele bordados) com muito carinho.
Recentemente um acidente vascular
tinha-lhe retirado ainda mais da já reduzida mobilidade, mas isso não lhe
afectou o humor, por vezes caustico e vernáculo que usou sempre para combater
anos de alguma sofrida existência e vivencia marcada por algumas tragédias
familiares.
Falava dos seus filhos, como os seus
anjos da guarda que apesar de distantes a guardavam e protegiam.
Falava da sua extrema devoção
religiosa e profana que a salvava em momentos de maior aflição.
Essa capacidade de perceber e
entender o outro mundo, fazia com que fosse procurada para resolver maleitas
que os adágios populares referem como sendo inatingíveis pela medicina
tradicional.
Não resisto a contar aqui um
episódio:
Numa dessas visitas quinzenais, ao
chegar a sua porta e ao ver que estava escancarada (como habitualmente), entrei
e chamei-a. Silencio! Voltei a chamar e como resposta apenas um sussurro vindo
da sua cozinha. Dirigi-me até ele. Ao entrar um cenário pouco usual, D.Lidia
com uma faca na mão passando pelo braço e tronco de um senhor, acompanhado pela
sua esposa, rezando em voz baixa. Surpreendido, recuei e aguardei!
Na saída um agradecimento feito e um
esclarecimento sobre aquele ritual ancestral, para terminar com o “Cobrão” passado
de geração em geração e que servia para colmatar o fácil acesso a cuidados de
saúde oficiais e tradicionais.
Estes e outros saberes foram-me
entregues com a satisfação e o orgulho. Com orgulho e enorme satisfação bebi
esses e outros ensinamentos de vida e para a vida.
Bem Haja D.Lidia!
"
Aqui na minha terra
há
biblioteca ao domicilio
o
senhor que a conduz
é
alegre e divertido.
A
Biblioteca-Ambulante
por
mês vem duas vezes
tira
fotocópias bonitas
traz
bons livros para leres!
Maria
Lidia do Nascimento Delgado - "Lídia Cesteira"
Descanse em paz D.Lidia!
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