crónicas de um bibliotecário-ambulante
poder de uma “bacia de couves”
Umas mãos frágeis, uma postura de
presença/ausência, uma voz quase imperceptível é a sua imagem de marca
identitária. Já lá vão mais de oito anos desde que conheci esta senhora. Nunca
estabeleci com ela, um diálogo para além de um simples cumprimento
circunstancial. Impávida, serena e silenciosa, sempre no mesmo sítio.
O ambiente não estava propício para
escuta de leituras, ora era uma tosse cavernosa, ora uma ou outra conversa paralela,
ora a passagem de algum retardatário. A leitura continuou!
“ Na véspera a tarde, Tonho viu a
avó guisar um bocado de carne magra que tinha guardada numa talha de barro e
coberta com banha. Se fosse a mãe, teria perguntado para que era aquela carne,
mas por ser a avó, não teve coragem de dizer nada. Como não ia haver nenhuma
festa, com certeza que era para o jantar de todos…Quando a noite foram cear, ao
ver a bacia das couves, pensou que a carne viria a seguir e quis guardar espaço
no estomago para uma coisa que tanto apreciava. Comeu apenas algumas colheradas
de couves, lentamente, fazendo tempo…”
in A Flor do Feto Real – M.Assunção Vilhena
Vindo lá do mesmo sitio de sempre,
mas já com uma voz mais perceptível e perfeitamente audível, iniciou-se um
relato tremendo bastante ilustrativo de outros tempos, outras necessidades e
diferentes perspectivas perante as adversidades.
Palavras de sofrimentos passados
numa infância distante como mão-de-obra (quase gratuita) em trabalhos
esforçados a troco de pouco ou de quase nada:
- “no primeiro dia apareceu um prato
de tomates e uma fatia de broa e no dia da acabamento deu-nos uma bacia de
couves com restos de farinheira. Para o marido, pão de trigo e bucho recheado!!
O (…) abriu a cesta do almoço, perguntou para quem era o pão de trigo. Quando
soube que não era para nós, pegou nele e atirou-o para o poço e disse que se o
patrão o quiser comer tem de o ir buscar!!!! ”
A leitura terminou!
Outras palavras mais importantes se
soltaram e de um monólogo passou-se imediatamente a um diálogo a três, quatro, cinco
vozes, libertando memórias e ecos de um tempo passado e guardado, por vezes a
sete chaves íntimas, como que tentando fazer um arquivo selectivo de dores e
pesares.
Aquela voz e presença, outrora
ausente, ganhou um novo espaço. Um clique, um interruptor que se conectou e
libertou algo que estaria preso nos fundos do seu ser.
Nas despedidas um sorriso cúmplice, o mesmo
apertar de mão frágil, a mesma postura, mas agora uma frase mais audível e
sensível:
- “ Boa viagem e volte sempre!”
Volto!
Regresso com mais "bacias de
couves!"
Até 2015.
Sem comentários:
Enviar um comentário